Da Revista Época
Já fazia mais de 100 horas que, com escudos
improvisados e rostos encobertos por camisetas, presos dominavam a
penitenciária de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte. Na manhã da quarta-feira, dia
18, o pátio da cadeia lembrava um campo de batalha medieval prestes a explodir.
Criminosos da facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC) ocupavam o lado
esquerdo da arena. Separados por uma barricada de chapas de madeira, membros da
organização potiguar Sindicato do Crime (SDC) estavam a postos à direita. Àquela
altura, com o peso de 26 assassinatos desde o início da rebelião, o governo
estadual se viu emparedado. Em desvantagem, decidiu negociar.
A missão foi encabeçada pela delegada Sheila Freitas,
diretora da Polícia Civil na Grande Natal. Sheila é descrita em uma homenagem
de parlamentares como “sinônimo de força e de muita determinação”, predicados
úteis nas tratativas com a bandidagem. Segundo um integrante do alto escalão do
governo, a negociação aconteceu na sede da polícia, no bairro Cidade Esperança,
com José Claudio Cândido do Prado, o Doni Gil, um dos chefões da facção
paulista no Rio Grande do Norte. O acordo foi registrado em ata. Na
segunda-feira, dia 16, ele havia sido retirado do presídio com outros quatro do
PCC para presídios federais. Foi Doni quem determinou os termos da rendição. Em
troca de devolver a calmaria à cadeia, exigiu que o governo transferisse dali
somente membros do SDC – no mundo do crime, mudar de “casa” é como ter a prisão
decretada pela segunda vez. Sheila consentiu, e o pacto foi selado.
Ao determinar a remoção de 220 detentos de Alcaçuz,
nenhum deles do PCC, o governador Robinson Faria (PSD) ignorou a recomendação
do setor de inteligência prisional: a de retirar integrantes da facção paulista
em vez dos membros da potiguar, por serem minoria – 500 diante de 1.000. “O que
dissemos não foi levado em consideração”, afirmou Wallber Virgolino, secretário
de Justiça e Cidadania, em entrevista a ÉPOCA. Num roteiro recorrente para
autoridades da segurança pública, Faria negou com veemência qualquer tipo de
acordo com o crime, assim como minimizou a divergência com Virgolino. Sheila
negou-se a atender à reportagem por impossibilidade de agenda.
Desavenças em momentos de crise são sinais inequívocos
de que a situação está fugindo do controle. A confusão entre as autoridades
logo foi sentida fora do gabinete. Na mesma tarde do aval para a remoção dos
presos, chefes do Sindicato do Crime emitiram um “salve”, como são chamadas as
ordens, determinando que os ataques chegassem às ruas. Pela primeira vez desde
o começo da crise na segurança pública – deflagrada em outubro passado, em
decorrência de uma guerra entre PCC e a carioca Comando Vermelho (CV) –, a
barbárie saiu das prisões.
A Grande Natal foi tomada por cenas de horror. A
Polícia Militar registrou pelo menos 38 incêndios e ataques a ônibus, carros
oficiais e prédios públicos. Amedrontada, boa parte dos turistas não saiu dos
hotéis. Na manhã da quinta-feira, dia 19, a batalha campal se concretizou em
Alcaçuz – e pôs fim ao frágil armistício costurado com o governo. Os presos se
enfrentaram com barras de ferro, pedras e pedaços de pau e armas de fogo. A
Polícia Militar afirmou que os detentos “estavam armados e se matando”. Sobrou
até para o diretor do presídio, Ivo Freire, ferido por estilhaços. Houve mais
mortes, mas o número não foi confirmado.
O levante em Alcaçuz começou na tarde de sábado, dia
14, logo depois do horário de visita. Segundo agentes penitenciários, presos do
PCC derrubaram o muro que os separava da ala ocupada pelo SDC e partiram para a
matança. Ciente do poder de fogo dos bandidos, o governo decidiu não invadir
para evitar um novo Carandiru, o massacre ocorrido em São Paulo em 1992, com
111 mortes de presos confirmadas – e nenhum policial ferido. Na manhã da
terça-feira, dia 17, o governador Faria disse que a situação no presídio estava
“sob controle”, mas a rebelião continuou.
O Ministério Público do Rio Grande do
Norte investiga se carcereiros facilitaram a entrada de armas de fogo e coletes
à prova de bala no presídio. O massacre, segundo o governo do estado, foi uma
retaliação da facção paulista ao episódio ocorrido em Manaus em janeiro. Na
ocasião, a organização Família do Norte (FND), aliada do CV, assassinou pelo
menos 56 integrantes do PCC.
A inépcia do governo do Rio Grande do Norte ao longo
da semana é consequência de um erro maior: ter deixado o caminho livre para que
as facções se estabelecessem ali. Roraima, Amazonas, Santa Catarina, Ceará,
Paraná, Minas Gerais, São Paulo, Alagoas e Paraíba (ler o quadro abaixo) compartilham
da mesma inaptidão. Só neste ano, esses estados tiveram guerras em presídios
com saldo de 136 assassinatos – quase um terço do total das mortes registradas
em 2016. A ampla maioria com decapitações, para demonstrar poder.
No Rio Grande do Norte, o governo demorou pelo menos
quatro anos para admitir a presença de uma organização criminosa no estado.
Desde 2003, já se tinha notícia da influência da facção paulista na Grande
Natal, segundo o livro Crime organizado e sistema prisional, do promotor paulista
Roberto Porto. Na publicação, Porto cita que “integrantes do setor de
inteligência da Polícia Militar de Natal localizaram, em março de 2004, na
favela do Mosquito, em Natal, propaganda e inscrições da organização criminosa
PCN”. Primeiro Comando de Natal é como o PCC era inicialmente conhecido ali.
A equipe de inteligência do sistema prisional do Rio
Grande do Norte, entretanto, só identificou em 2007 os primeiros indícios de
uma sucursal potiguar do PCC. Naquele ano, dois detentos – Alexandre Thiago da
Costa Silva, o Xandinho, e Jackson Jussier Rocha Rodrigues, o Monstro, mais
tarde morto em confronto com a polícia – foram enviados de Alcaçuz para a
Penitenciária Federal de Catanduvas, no Paraná. Lá, tiveram contato com
integrantes do PCC. Aprenderam com os profissionais do crime. De volta ao Rio
Grande do Norte, reproduziram os ensinamentos.
Confortável com a lacuna deixada pelo governo, o PCC
se estabeleceu e cresceu. Um dos chefes da sucursal potiguar responsáveis pela
rebelião da última semana, João Francisco dos Santos, o Dão, já havia dado uma
demonstração de força no passado. Segundo documentos obtidos por ÉPOCA, em 2013
comandou dois motins. Em 2014, foi flagrado circulando desinibidamente com um
celular na cadeia. Considerado um preso violento, Dão foi condenado pelo
assassinato do radialista Francisco Gomes de Medeiros, em Caicó, no interior do
estado.
A resposta à invasão de uma facção forasteira veio nos
anos seguintes. Em março de 2013, criminosos que discordavam da “obediência
cega” ao PCC, segundo uma promotora, criaram o SDC. Disputavam o controle do
mercado de drogas dentro e fora dos presídios. Apesar da divergência, o SDC
adotou práticas e estrutura quase idênticas às de seu rival – desde o estatuto,
uma espécie de código de conduta do crime, ao organograma de funções.
O governador Robinson Faria veio a público na
quinta-feira para dar uma resposta às trapalhadas ao longo da semana. No ponto
mais agudo da crise, anunciou a entrada do Batalhão de Choque em Alcaçuz como
medida imediata para conter a batalha medieval. Prometeu mais. Na entrevista ao
canal de TV Globonews, disse ao vivo para o Brasil que, na manhã seguinte,
daria início à construção de um muro para isolar grupos rivais. Parecia ter
esquecido que a derrubada de um, dias antes, permitiu o massacre em Alcaçuz.
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